½ tostão

Estávamos a discutir ao jantar, quase no fim, doces e rebuçados e outras guloseimas. Aqui por Inglaterra há todo um mundo de marcas de chocolates e outros produtos carregadinhos de açúcar e quase sem cacau em competição desleal com frutas e legumes no que toca às crianças. As minhas filhas quase todos os dias voltam da escola com um pacote de Haribos, ou Skittles, ou Milk Buttons, ou Smarties... há sempre alguém que faz anos e quando não, é um professor que recompensa com Chupa Chups ou outras iguarias infantis.

A discussão concentrou-se numa caixa de "Milk Tray" com dois andares. As filhas a perguntarem "Posso comer mais um?" e nós pais a contrapor "Mas vocês já comeram gelado e bolo e gummi bears hoje!!!... Quanto mais açúcar é que vocês podem comer?" pergunta esta totalmente ineficaz, pois para uma criança, a memória da degustação de açúcar é inferior à de um peixe de aquário e puramente visual naquilo que se apresenta imediatamente à sua frente, com promessas literalmente doces e embrulhadas em cores e reflexos irresistíveis. Batalhas perdidas... sempre.

E o passado teve de vir ao de cima inevitavelmente. A minha mulher, natural de Belfast, a notar que uma caixa de "Milk Tray" nos anos 70 e 80 era um luxo que só acontecia raramente em sua casa, muitas vezes como oferta de convidados que vinham partilhar um almoço ou jantar de fim-de-semana. E a caixa ficava depositada à entrada, a exibir-se, dias, semanas, meses a fio, com promessas degustativas, até um dia o pai, num serão televisivo, se levantar e dizer "Acho que esta noite podia comer... chocolate!" E lá vinha a caixa então, finalmente, distribuída pela família até uma outra oportunidade.

Ainda mais antigo sou eu... não tenho qualquer recordação de bombons quando era miúdo. A única ocasião "doce" era pela Páscoa, quando amêndoas eram partilhadas pela família alargada num almoço com avós e tios, misturadas com bolo de erva-doce, o qual era mais pão com anis, com ténues vestígios de açúcar.

Às vezes por iniciativa própria, com fundos irrisórios, ia à mercearia local do Norberto comprar rebuçados de côco a meio-tostão cada um!!! 5 tostões eram 10 (dez)!!! e era uma festa. Outras vezes, se quisesse usar de maior prodigalidade, comprava rebuçados de mentol a 1 tostão cada! Um luxo. Boca mais fresca, mas metade do tempo com açúcar na mesma. Chocolate? Népia, nunca, era inatingível e mau; Favorita (o pior) e Regina eram as duas marcas que dominavam o mercado e "Milk Tray" uma fantasia que fazia parte do imaginário do contrabando internacional. O gosto nacional nem sequer o mencionava. A frase mais utilizada era "Se fores a Londres trazes-me uma caixa de Black Magic?" a qual era a escolha de eleição. E ainda havia aquela bizarra marca e conceito que dava pelo nome de...
A atração nacional pelo pão aliada à luxúria do chocolate numa combinação que não era mais do que uma má receita de um petit-pain, que nunca conheceria as delícias de um  forno quente.
As minhas filhas comem agora mais guloseimas numa semana do que eu comeria num ano ou talvez dois. E a inflação agora põe tudo em perspectiva. Com um euro poderia comprar 40 mil rebuçados de côco. 40 mil!!! hmmm! Dores de barriga e dentaduras garantidas com certeza.

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