De fora

Esta história vem de há uns anos atrás e já nem me lembro da fonte. Passou-se na Ilha do Corvo e de certo modo penso que ainda se passa.

Quando o Serviço Nacional de Saúde foi criado, médicos foram destacados para cobrir a população nacional com cuidados de saúde como exigia a Constituição. A Ilha do Corvo estava incluída por definição, mas o problema era encontrar alguém para ir tão longe e dedicar-se a cuidar dos seus cerca de 400 habitantes. Não era o lugar mais cobiçado para se ser médico de família num Centro de Saúde perdido nos confins do Atlântico. De certo modo seria para uma pessoa especial, ou jovem, ou à procura do seu primeiro destacamento. Ninguém se poderia metamorfosear com os locais de uma assentada, um processo lento e para quem vive na ilha desde sempre, a tresandar de transitório.

Um médico fresquinho lá se foi instalar (não sei se o primeiro ou algum substituto...), de fora com certeza, cheio de ideias, ideais, de vontade de mudar, de trazer progresso e felicidade. E lá começou as suas consultas, de fora, sempre estrangeiro, novo e olhado com suspeita pelos locais, a tratar de gripes e furúnculos, vacinas, aspirinas e antibióticos. Mas ele queria mais... queria trazer o século XX no mínimo para benefício e felicidade dos corvinos. E decidiu abrir uma consulta de planeamento familiar. Fez propaganda, anunciou horas e horários, abriu a porta a condizer e esperou... ninguém veio. Esperou ainda mais... ainda ninguém. Nem um!

Cheio de frustração e desapontamento,  com uma total incompreensão das razões da população em relação a uma hipótese de relacionamento pessoal sem culpas (nem partos), uma certa tarde decidiu inquirir com um dos locais (masculino por sinal) entre duas cervejas no bar local:

— O senhor diga-me lá... porque é que ninguém vem à minha consulta? Porque é que estão contra a ideia de ter sexo sem receio de ter filhos, de gozar uma relação sem medos ou ameaças, só pelo prazer?

E a resposta:

— O Senhor Doutor desculpe-me. Sei que é bem educado, vem de Lisboa e quer trazer coisas novas que até são justas para todos nós, até segundo o nosso ponto de vista. Sexo sem medos e em total liberdade é uma proposta aliciante. Mas nós temos um Padre... um Padre que vive connosco há décadas, que é um de nós, a quem nós temos de confiar o mais íntimo das nossas almas e pensamentos, que nos ajuda nos nossos piores momentos, nos conforta, nos aconselha e nos perdoa. O Senhor Doutor está aqui hoje e amanhã irá para outro sítio levando as suas ideias e algumas recordações de nós. O Padre diz que é pecado usar preservativos ou pílulas ou outros métodos que impeçam o acto da procriação para gozar a luxúria do prazer da carne. E nós temos um contracto com ele... ninguém pode ir à sua consulta e esconder o facto que o fez e a sua finalidade. Aos Sábados teremos que nos confessar para podermos comungar todos juntos na Missa de Domingo. E quem não o faz será imediatamente notado por todos. Não sei se no íntimo o Padre está ou não de acordo com a contracepção, mas ele tem de seguir as ordens que a Igreja lhe impõe. E um dia ele morrerá aqui, como todos nós, e será enterrado no cemitério aqui, como todos nós.

E a conversa acabou. Recentemente, ao pesquisar alguns dados relacionados com a ilha e os seus serviços de saúde, descobri por exemplo: que a população está totalmente ligada à Internet por WiFi através de um projeto com a Microsoft, que a ilha também reduziu ou eliminou a utilização e importação de combustíveis para a produção de eletricidade, sendo esta agora feita através de painéis solares. A ilha do Corvo é a mais moderna e auto-suficiente povoação nacional, senão mundial. Não sei no entanto qual é a atitude da população em relação a métodos contraceptivos, mesmo com todo este acesso tecnológico.

Surpreendentemente, no meio desta pesquisa, surgiu-me esta notícia no Público intitulada "Chegar ao Corvo e ficar para sempre", a qual se refere a um médico que vive na ilha há mais de trinta anos, de seu nome João Cardigos. Se é o mesmo da história acima mencionada, só posso concluir que aquela conversa entre duas cervejas o marcou profundamente.  O mar e o povo não o deixaram partir. E quem sabe se um dia, o seu descanso final seja ao lado do Padre.

Comentários