Eu, Tu, Ele...

Tu

“Tu falas modesto, ouviste?! Falas modesto e humilde!!! Não te quero ouvir falar outra vez ao telefone da maneira que te ouvi falar. Não se fala assim com as pessoas!!! Não se tratam assim as pessoas, ouviste?!! Tu falas modesto, modesto e humilde!”
Ouvi estas palavras há pouco tempo, ditas (em tom comedido por sinal) com um sotaque beirão interior que seria imediatamente desconsiderado por gente mais urbana e presumidamente culta. Ouvi isto enquanto esperava por mais detalhes de um acidente que os meus pais tiveram, o agente da GNR que atendeu a minha chamada (cortês, ressalvo de imediato, penso que as palavras acima lhe não seriam dirigidas) deixou o telefone “aberto” enquanto ia buscar mais informações. Não pude deixar de ouvir… primeiro surpreendido por ficar surpreendido por ouvir estas palavras; depois admirado por imaginar um oficial da GNR a dar uma “descasca” a um agente usando palavras como “modesto” e “humilde”; finalmente com um sentimento de redenção, de sentir que havia alguém (num departamento onde diariamente se ouvem palavras de pessoas literalmente em estado de choque) que possui a exacta medida do que se está a passar, solidário com gente que quer saber se se está morto ou vivo, em que hospital ou morgue, se foi para casa, se está identificado ou por… Estas palavras reconciliaram-me de imediato com a tragédia por que estou a passar, por saber que outros em idêntica situação irão ouvir do outro lado alguém “modesto” e “humilde”.
E ele não aprendeu isto num manual de 500 páginas ou PDF de 5MB mal traduzido e pior adaptado “How to deal with successful meetings” ou “How to get the most of your customer service”, instruções alienadas, importadas de uma experiência que nada tem a ver com o nosso País ou Cultura, que só servem para imediatamente desumanizar um contacto que deveria ser “modesto” e “humilde”. Senti-me em Portugal, só em Portugal, com orgulho.
Dá-se a Torre e Espada por Valor, Lealdade e Mérito. Dê-se então.

Eu

Eu, eu, eu!!! Quantos eus oiço diariamente? Quanta gente passa por mim a dizer em voz alta para quem quer ouvir ao telemóvel ou cara a cara, “Eu faço, eu aconteço, eu digo-te desde já, eu não to admito, eu acho que, eu, eu, EU!!!!” Para mais ênfase do diálogo, o qual é por sinal sempre mais um monólogo, acrescenta-se o inevitável cá!!! para talvez tornar o Eu mais comprimido, centralizado e pedante… “Eu cá digo-te, eu cá ninguém me faz o ninho atrás da orelha!!!??? Eu cá te espero!”
Nunca ouvi tanto Eu como agora. Quando estou em Inglaterra digo eu (bazófia lá e agora neste texto) que o discurso em Português não usa eu. Não precisa. Somos mais “modestos” e “humildes”, dizemos “Penso, logo existo” e não “Eu penso, eu logo existo” como os franceses e ingleses dizem, adicionando a primeira pessoa do singular aleatoriamente a qualquer momento do discurso. Fui sempre habituado a não dizer eu, mas hoje em dia a moda pega-se, mais importantes e alienados, dando-nos cada vez mais importância na razão inversa da mesma.
Falo ao telefone com a minha melhor amiga e trocamos as nossas impressões do quotidiano, tento introduzir o meu ponto de vista no diálogo e de repente a oiço interromper-se e dizer “Desculpa… diz lá então?”, modéstia e humildade, que destruo quase imediatamente quando começo com “Eu cá… “ e quase mordo a língua em expiação por imediatamente ter respondido com pedantismo e arrogância, condicionado por um mundo que diáriamente tem eus cada vez maiores e ao mesmo tempo mais inconsequentes...

Ele

Ele ou ela… ele faz, ele tem, ele vai acabar bem ou mal, roubou ou maltratou, falamos dele maioritariamente num discurso negativo, ou com inveja ou numa tentativa subliminal muitas vezes indiscreta de realçar o nosso Eu. Se “penso, logo existo” é uma afirmação de auto-justificação, agora só tem significado quando falamos dele, dizermos o que pensamos dele (na ausência dele concerteza), para justificar a nossa existência. Hoje em dia Eu não pode existir sem Ele, Ele é o nosso padrão, a medida da nossa inveja, do nosso fracasso ou sucesso.

Por isso te digo:
“Tu falas modesto, ouviste?! Falas modesto e humilde!!! Não te quero ouvir falar outra vez ao telefone da maneira que te ouvi falar. Não se fala assim com as pessoas!!! Não se tratam assim as pessoas, ouviste?!! Tu falas modesto, modesto e humilde!”

Um grande Bem Haja!


Comentários

  1. Muito interessante Paulo. Tanto que nao ha comentarios possiveis, transmitiste tudo o que era preciso entender.Abraço. Continua.

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  2. Gostei mesmo! Já conversei sobre o assunto vezes sem conta e tu resumiste a coisa de forma brilhante. Se me permites vou plagiar-te :-), com referência, claro! Engraçado que foi no Inglês que encontrei a maior moderação no uso do Eu, excepto no CM, onde se privilegiava o nós.
    Bisucas

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  3. Muito obrigado areiadomar. Um abraço e continuarei sim senhor...

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  4. Obrigado Bisucas. Os Ingleses são moderados no uso mas a estrutura gramatical obriga ao uso compulsivo do "I". Coisa que agora transparece mais e mais no mal traduzido discurso nacional.

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  5. Interessantes "as coisas que passam por essa cabecinha"... Manda sempre. Bjs

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