Gin

Há uns tempos atrás estava a almoçar com o meu conterrâneo Oeirense Loucuras (aka Fernando Piloto) em Manchester. Estamos os dois desterrados aqui nestas terras frias, tipo Eça de Queirós, com a subtil diferença de não haver uma série de romances a serem escritos nos tempos mais próximos.

O Louco e eu, embora Oeirenses há décadas, temos diferentes origens geográficas na Vila; ele de Nova Oeiras (o que implica cigarros constantes, tipo locomotiva, muitas bicas, passe social na Tendinha e fazer parte da mobília no Beer Hunter), eu do Bairro das Caixas, mais São Julião (muita praia, surf, desporto, poucos cigarros, muitas inalações marroquinas, bronze perpétuo, Tendinha também).

Estamos então a almoçar e começamos a lembrar e tentar encontrar indivíduos comuns, pois sabemos que estamos divididos cultural e geográficamente pela linha do comboio. Relembramos Nova Oeirenses, tais como as Bruxas, os Paivas, Lechners, o Franky, a Bébé e o Bébé (este não precisa de ser relembrado; temos profundo conhecimento através de infinitas imperiais no Beer Hunter com o Luís Miguel, castiço quase castiçal pub landlord), Deputado Becas, Zé Velho e muitos, muitos mais que não me vêm à memória que me perdoem os omitidos. Relembramos malta “das Caixas” tipo Canadá, Cassius Clay, Pita, Orlando, Portas, Inocentes... nomes também do Liceu de Oeiras, como o Zito, Mila, Daniel, Albertis, KGBento, Eugénio... infindável.

No meio da conversa vêm nomes de gente que já não está connosco, especialmente nas Caixas onde a mortalidade juvenil daria origem a um vasto estudo antropológico... seguido de gente que está a lutar pela vida no sentido mais próximo da morte. Primeiro o Gaducho, irmão mais novo da Bebé e do JeanP (nunca conheci muito bem) e a seguir a... Gin (gulp). Mais tarde, quando falo com o Louco outra vez antes do Natal, diz-me que o Gaducho morreu.

Há umas semanas atrás, o Louco relembra-me a morte do Gaducho. E eu pergunto “E a Gin como está?”... e a resposta “A Gin? A Gin também já morreu, morreu antes do Gaducho em Setembro, não te disse?!” Fico gelado e vêm-me lágrimas aos olhos. Não consigo acreditar que a Gin não esteja mais connosco. Faz parte da nossa cultura juvenil e deveria ser imortal. Faço um pesquisa no Google e sei que “Gin” não vai dar o resultado pretendido. Procuro o nome, Margarida Felgar, e só há meia dúzia de ligações, Elite Models e Herbalife.

Vêm-me à memória momentos do passado quando durante um ano lhe dei explicações de Matemática para o exame do 12º mais ao namorado da altura, o meu amigo de infância Nuno Portas. Como pontualmente, às 9 da manhã, me apareciam os dois para levarem mais uma ensaboadela de funções, primitivas e derivadas, muitas vezes com uma ressaca infinita, minha e deles, mas sempre uma hora bem passada e divertida, quase que parecia mal pagarem pela lição. Ambos extremamente diligentes e inteligentes.

Vem-me à memória a notícia da morte do irmão num desastre de automóvel a ir/vir do 2001 no Autódromo, numa Sexta à noite, na véspera do Concurso de Miss Portugal que a Gin abandonou, mas que teria ganho pois na altura não havia ninguém mais bonito no nosso País.

Vêm-me à memória conversas ocasionais em discotecas, Fateixa, Narciso, sempre com um sorriso, com um olhar perceptivo que algumas pessoas podiam confundir com arrogância ou desdém mas que tinha a ver com inteligência aliada ao termo moderno “streetwise”.

Acabo com este pequeno episódio. Uma certa manhã em 198?, o Orlando, Paulo Bello (aka Super Homem) e moi-même vamos na Marginal a caminho do Meco para um longo dia de praia e mariscos vários. Em Paço d'Arcos, um carro passa por nós (seria um Autobianchi Y10?) e alguém na nossa viatura exclama “Eh, vai uma gaja boa naquele carro, Super! pé no pedal e segue-a!” sabe Deus qual seria o objectivo deste exercício. O Super põe o pé no dito, o Bianchi vai bem acima dos 70Km/h autorisados por lei e lá vamos em perseguição. “Olha, a gaja topou-nos está a olhar pelo retrovisor!” comentamos nós com ar satisfeito, ainda hoje não consigo descortinar o objectivo dos comentários, perseguição, troca de olhares espelhados. Os semáforos da Cruz Quebrada para o Estádio estão vermelhos. O Autobianchi pára na faixa da esquerda e nós quase a seguir. A porta do condutor abre-se e a “gaja boa” sai da viatura, põe as mãos nas ancas e exclama “O que é que vocês querem seus ...?” já a rir-se perdidamente! E nós “Fénix, é a Gin! que vergonha!” A Gin continua a “mandar vir”, a rir e a sorrir, a actuar, já nos tinha topado há milhas, carros a apitar, semáforos mudam para verde e vermelho outra vez. Depois tira as mãos das ancas, vem ter connosco, também saímos do carro, pow-wow na Marginal, “Vocês não têm juízo nenhum! E se fosse outra gaja? O que é que vai pela vossa cabeça?” diz ela, “Desculpa Gin! Estás bem?” respondemos com ar de contrição.

Beijinhos e despedidas, continuamos na nossa vida, a Gin na dela.

Não sei se a vi depois disto. Esta é a minha última memória.

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