Rendes-te?


"Chamamos os soldados japoneses de fanáticos quando preferem morrer a se deixarem aprisionar, enquanto que os soldados americanos que fazem o mesmo são... heróis"

Robert Maynard Hutchins



Quem brincou aos índios e aos cobóis quando éramos pequeninos? Fui um deles e lembro-me passarmos horas na rua, no nosso bairro, duas dúzias ou mais de miúdos a fazer guerras e pazes. Um jogo, de regras difusas que mal recordo, dois grupos, uns índios, outros cobóis, "armados até aos dentes" de equipamento guerreiro, arcos, flechas e lanças feitos de canas, revólveres e carabinas para aqueles com pais mais afortunados, ou que queriam criar invejas, ostentações e lutas familiares aquando do Natal com "Mãe, quero uma pistola! Quero um chapéu! Quero um fato!" pedidos constantemente negados. Improvisação reinava quando não havia pai rico, camisas e calças, penas de gaivota a picar o couro cabeludo, de pombo no fim das flechas numa ilusão de direcção, canas compridas com molas de roupa a servirem de punho, a tentar imitar uma G3 a desafiar uma continuidade histórica, até aquele miúdo com uma metralhadora de plástico de cartucho rotativo dos tempos do Al Capone, todo o arsenal servia para efeitos bélicos.

As regras do jogo de que me recordo eram parecidas com um das escondidas colectivo. Os índios lá se iam primeiro, e os cobóis iam na peugada e ambos os grupos tentavam emboscar possíveis batedores isolados. Havia silêncio, esconder-se atrás das muitas árvores e arbustos existentes até surpreender um índio ou cobói, o qual só poderia feito a uma distância máxima de três passos (ou seriam cinco?)

"Mãos ao ar!!!" era o grito de alerta para iniciar a captura, se a distância era legal, o potencial capturado não poderia desatar a correr para o seu cóio, para reatar o jogo. E a seguir aquela inevitável, tão importante pergunta...

Rendes-te?...

A pergunta não exigia resposta. A rendição era óbvia, parte do jogo. Às vezes amarrados com cordas, outras com algemas a salientar a disparidade histórica. Lembro-me uma vez amarrámos acho que o Zé Canita a uma árvore, para continuarmos o jogo e para ali ficou esquecido. Só passadas umas horas o vimos chegar junto de nós, a chorar baba e ranho a dizer que tinha gritado e berrado sem qualquer resultado. Foi libertado por um transeunte não identificado. 

Mas era assim... rendes-te... não havia discussão. Era pura confiança no captor, sem grandes abusos (talvez uns calduços leves de quando em vez), a captura era parte do jogo, sem ela o jogo não fazia sentido.

E porquê tudo isto? Rolem agora 50 anos! Olho para os que passam, os que falam, discutem... hoje em dia ninguém se rende. Ninguém. Não sei o que se passou mas é raro, se não impossível, encontrar alguém que se tenha rendido, que se deixe cativar como a raposa do Principezinho. Render-se hoje é uma vergonha, sinal de fraqueza, falhanço, perda de independência. Há uma arrogância quase desesperante, talvez resultado de histórias da Segunda Guerra Mundial onde japoneses kamikazes preferiam morrer à vergonha de se deixarem aprisionar, ou talvez dos horrores que muitos captores têm vindo a executar durante a segunda metade do século XX. E contudo... ao relembrar os meus índios e cobóis nunca me passou pela cabeça ser menos igual do que os meus captores índios ou cobóis, dependendo do começo do jogo. Nas relações actuais (pessoais, políticas etc.) a falta de rendição equivale a pura desconfiança e resolvam-me lá a incongruência de viver um relacionamento em que a base principal é a falta de confiança, completamente mascarada pela palavra mais moderna e forte de independência. Independência e desconfiança vão hoje em dia de mãos dadas. Não há prémio para quem adivinhar o porquê de quão fragmentadas e frágeis são as relações de hoje.

Por isso um conselho... na vossa próxima relação, se quiserem ir ao fundo do fundo não perguntem "E tu? amas-me?" mas sim "E tu? Rendes-te?" e saibam que, tal como no meu jogo de infância, não será necessária qualquer resposta.


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