Dos Livros... e dos Desenhos


Nunca fui bom a Desenho, não sei bem porquê, sou quase uma nulidade, tenho problemas de espaço, de projectar uma ideia nos confins restrictos de uma folha de papel ou tela. Trabalhos Manuais ainda pior, o mesmo problema agora em 3D. 

Quando estava no ciclo, no Liceu de Oeiras, nos ainda novos na altura barracões de lata, esta minha incapacidade perturbava os meus professores, especialmente no 2º Ano. Lembro-me de gastar enormes quantidades de papel de lustro vermelho mais arame e cola e horas para acabar com uma caixa à qual o meu professor não pôde exprimir qualquer comentário, só um olhar de frustração a reflectir o meu. Passei a Desenho sempre résvés com 10 valores mais por piedade, esforço e conjuntura com o aproveitamento noutras disciplinas. Deve ser por isso que gosto de fotografia, gosto de imagens, o espaço à minha frente é infinito e os fotões fazem o trabalho todo por mim.

Mas o 1º Ano do ciclo foi diferente. O meu professor de Desenho e Trabalhos Manuais era o Zink (apelido do mesmo material que revestia os barracões pré-fabricados). O Professor Zink era cheio de inspiração e energia um pouco à Robin Williams no Clube dos Poetas Mortos "Oh Captain, my Captain!". Quando entrou pela primeira vez na aula disse a todos que vinha de Angola e começou a chamar Chefe a toda a gente eu incluído. Nos meus 10 anos de idade protestei imediatamente dizendo... "Stôr eu não sou Chefe, sou só Sub-Chefe (a sério fui eleito sub-chefe na altura), o Chefe é o João Portas!". O Zink respondeu "Aqui somos todos Chefes de nós mesmos se soubermos pôr a nossa imaginação no que fazemos." Que bom, pensei eu, mesmo sabendo que era uma nulidade a Desenho, o meu colega-amigo João Portas era um artista, tinha um poder de traço ímpar na turma. O Zink gostava também de utilizar com regularidade o prefixo "auto" em auto-estima, auto-avaliação, auto-disciplina, autodidacta, de tal modo que a alcunha que ganhou de todos nós foi auto-estrada, talvez por ser a única palavra no nosso vocabulário que começava por auto...

Lembro-me do meu primeiro desenho a guache... (com guaches Cisne ou talvez Sino porque os da Pelikan custavam dez vezes mais e eram só para famílias mais afortunadas), em papel Cavalinho, acho que de uma lagarta castanha em tons de castanho num fundo castanho com patas verdes porque as tintas se misturaram todas e como sabem tudo acaba em... castanho!! Horrível, pensei. O Zinc pegou no meu desenho ainda a pingar, e mostrou a toda a turma dizendo "Aqui o Chefe fez um quadro extraordinário cheio de imaginação!". Eu não via nada disso comparado com a arte do João, o qual não teve menção honrosa. Mais tarde fiz um desenho a canetas de feltro e tentei usar imagens de pessoas e algo mais gráfico que tinha visto em publicidade. Como sobrou muita zona "branca" fiz uns riscos apressados para "encher". Desta vez o Zink chamou-me e disse "Oh Chefe, a tua imaginação falhou-te!!!???" Nunca percebi bem o que ele queria dizer, acho que o Zink estava um bocado na estratosfera para um puto como eu.

Isto tudo para vos dizer que o mesmo Zinc recomendou a leitura de uma autora, Selma Lagerlöf, Prémio Nobel da Literatura em 1909. O meu primeiro livro a sério foi "O Livro das Lendas" que ainda tenho e que foi um choque drástico da minha rotina habitual dos Sete, Cinco, "os almanaques do Fantasma e do Patinhas, os Falcões e os Mandrakes". Depois deste livro comecei a ler tudo! Não consegui encontrar a versão portuguesa mas o título em inglês é "The Girl from the Marsh Croft" onde a primeira história dá título ao livro. Para mim ainda hoje é extraordinário como a descrição de uma sociedade rural na Suécia nos fins do século XIX tem tantas referências comuns com as minhas experiências.

E cada vez que leio esta primeira história fico inexplicavelmente comovido...

Comentários

  1. Viva Zé Paulo.

    Que maravilha de texto.
    Muitas lembranças são-me trazidas desses tempos. Num ápice regresso aos bancos do LNO e às minhas aulas de “Desenho”.
    Não tive como professor o Zink. Em contraponto, caiu-me em sorte uma professora que era conhecida entre os alunos por “Maria Botija”, cognome esse resultante provavelmente da sua anatomia …. “quente”.
    Recordo-me ainda hoje a primeira vez que, fora do âmbito das festas carnavalescas, vi uma cabeleira pintada de roxo, o que, adicionado ao remanescente e opulento conjunto, desafiava os alunos a tecerem comentários menos favoráveis no que à estética dizia respeito.
    As nossas aulas de Desenho eram sobretudo um tributo à sua capacidade de suportar a crueldade dos “miúdos” porque, apenas procurávamos incomodar das formas mais imaginativas a dita senhora.
    A nossa “arte” - pura guerrilha - era outra e normalmente com uma taxa elevada de sucesso, não em relação às notas obtidas, já que estas, invariavelmente, eram inversamente proporcionais à nossa dedicação ao “traço”.
    Mais tarde, já na disciplina de Geometria Descritiva tive professores homens: o professor Calado Lopes, célebre pelo seu “narizinho vermelho”, (diziam as más línguas que essa cor não resultava do efeito dos pólenes mas, sim de uma constante degustação de uma boa pinguita) e, o professor Alberti, com o qual finalizei os anos dourados do Liceu.

    Falas e bem, daquilo que gostas, de um livro e de fotografia.
    Aí temos gostos comuns (serão por certo muitos mais). Não resisto assim a aconselhar-te um outro livro, que te coloca na lente de alguém que, de Nixon até Obama, passando pelos Stones e os anos do S, D&R’R, conheceu e conviveu com metade da gente famosa deste planeta.
    A foto de John Lennon deitado ao lado de Yoko Ono publicada na capa da revista “Rolling Stone” é da sua autoria.
    “Annie Leibovitz at Work” é o livro que aconselho vivamente a leres. A ti e a todos.

    Abraço grande de
    J. Malafaia

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